Crônicas de um Homem Morto

06 fevereiro 2012

As preces - Parte XXXIV

Lembrei-me da época em que eu tinha semelhantes.

Havia um sujeito cuja camisa estava sempre em desalinho com quaisquer normas de elegância. Sobrava pano e as cores há muito haviam perdido o seu tom de fábrica. Aquele suor excessivo, que chegava a afastar a maioria dos membros do sexo oposto, deveria obrigar o dono a muitas lavagens com mais rigor do que o normal.

Porém, o que me chamava a atenção era a devoção àquele velho relógio branco de algarismos romanos com os ponteiros finos e negros que ficava na mesma parede da porta principal de nossa sala, bem em frente às janelas para a rua.

Quando desviava a atenção ao relógio, o sujeito parecia olhar para um altar religioso. Eu o imaginava direcionando preces, rogando votos, suplicando que, sei lá!, o Deus-Tempo interferisse nas horas e as fizesse ganhar velocidade.

Entretanto, a passividade do seu Deus parecia aumentar o fervor. A fé nunca lhe faltava. Com o avançar do tempo, a expressão tomava quase ares de desespero, o relógio tornava-se o seu fiapo de esperança, como se o sujeito se declarasse derrotado diante de todos os seus afazeres e só restassem as suas orações para sobreviver àquele infortúnio.

Era nesse momento que ele mordia o lápis com mais força a ponto de sentir o gosto amargo da madeira a invadir-lhe a garganta. Era o sinal para eu ir tomar um café com os outros.

E eu odeio café.

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