Crônicas de um Homem Morto

25 novembro 2006

Crônica de um morto - parte II

Eu ainda estou morto, você não. Apesar disso, a minha fila diminui, agora sim, como a sua. Assim que chegar a minha vez, terei um resquício de vida, por mais estranho que isso possa parecer.

A sua vez não chegou, a minha sim. Subitamente, a cor volta ao meu corpo. Sou avisado que, pelos meus antecendentes, tenho mais cinco meses de vida. Agradeci, desejei boa sorte a todos e fui embora olhando o relógio, estranhando essa história de "cinco meses de vida".

O calendário não mente e não dá trégua. Estou em uma encruzilhada: agarro-me, desesperado, ao fiapo de esperança a mim oferecido ou, corajosamente, rejeito-o, atrás de uma nova vida, mesmo que, momentaneamente, indigna?

É assim que eu levanto-me, é assim que eu me deito. Pela manhã, decerto, encontram-se os piores minutos do dia. Dez, para ser mais preciso. Do exato momento em que deixo a cama até a saída do banheiro.

Só há uma coisa que supere a agonia dos momentos que precedem o cruel encontro diário com o espelho: o horror ao perceber, dia após dia, que a cor que vemos não nos pertence.

O horror, o horror...

Crônica de um morto - parte I

Eu estou morto. Você não está. Pode parecer meio óbvio, mas é sempre bom lembrar que, às vezes, o que está na nossa cara, pode estar um pouco acima dela.

Não lembro como morri. Talvez tenha sido imprudência, pois, afinal, relacionar-se com os outras pessoas não deixa de ser um reconhecimento de que somos descuidados e fracos. Que necessitamos de um simples sinal.

Se eu tivesse ficado em casa, rabiscando uma folha com uma caneta, sentado ao chão, nada teria me acontecido.

Nada!

Quantas vezes eu contei em uma árvore morta o que me fazia sair de casa todos os dias? Rabisquei fórmulas em que tentava equacionar os prós e contras de ter que dar bom dia para o porteiro e ganhar o asfalto?

Nunca soube a diferença entre meia-noite e meio-dia, ou entre as seis horas da tarde e as nove da manhã. Talvez, agora, eu entenda.

De certa forma, hoje, consegui o que eu queria: estou morto. Eu e algumas dezenas de pessoas, alinhadas de frente para uma outra, atrás de um pedaço de vidro.

A minha vez chegará. Então, poderei, enfim, contar a minha crônica.